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diff --git a/books/sociedade/processo-civilizador.md b/books/sociedade/processo-civilizador.md index 7416f27..4c6f55d 100644 --- a/books/sociedade/processo-civilizador.md +++ b/books/sociedade/processo-civilizador.md @@ -1,4 +1,4 @@ -[[!meta title="O processo civilizador"]] +[[!meta title="O Processo civilizador"]]  ## Índice @@ -10,6 +10,93 @@  * [Mittelalterliches Hausbuch](https://commons.wikimedia.org/wiki/Category:Mittelalterliches_Hausbuch_von_Schloss_Wolfegg)    (Livro de imagens da Idade Média) ([esta é uma das representações que Elias comenta](https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/2/20/Pinker-HausBuch1480.jpg))    e [Bruegel](https://www.pieter-bruegel-the-elder.org/). +* Crítica a Talcott Parsons e à apologia ao conceito de "alma" ou "mente" como "fantasma na máquina" (caixa preta). + +## Excertos + +### Da Introdução de Renato Janine Ribeiro + +    Mais que contar anedotas, porém, Elias está mostrando algo que sempre lhe foi +    muito caro, enquanto teoria: o desenvolvimento dos modos de conduta, a +    “civilização dos costumes” (como se chamou a tradução francesa deste livro), +    prova que não existe atitude natural no homem. Acostumamo-nos a imaginar que +    tal ou qual forma de trato é melhor porque melhor expressa a natureza humana — +    nada disso, diz Elias, na verdade o que houve foi um condicionamento (por este +    lado, ele é levemente behaviorista) e um adestramento (por aqui, ele remete a +    Nietzsche e a Freud). Dos débitos para com os psicólogos ele próprio fala, bem +    como de seus referenciais sociológicos, na Introdução de 1968, que vai no fim +    deste volume. Seria bom recordarmos, um pouco, Nietzsche. + +    Num de seus mais importantes livros, Da genealogia da moral, Nietzsche insiste +    em como foi difícil e que custos teve, para o homem, a instauração da moral (ou +    mesmo, se quisermos, de várias morais). Em outras palavras, a moralidade não é +    um traço natural, nem legado da graça de Deus — ela foi adquirida por um +    processo de adestramento que terminou fazendo, do homem, um animal +    interessante, um ser previdente e previsível. Foi preciso que, pela dor, ele +    constituísse uma memória, mas não no sentido aparente de apenas não esquecer o +    passado: onde ela mais importa é quando se faz prospectiva, quando se torna +    como que um programa de atuação — marcando o sujeito para lembrar bem o que +    prometeu, o que disse, de modo a não o descumprir. A memória importa não tanto +    pelo conhecimento que traz, mas pela ação que ela governa. O seu custo é a dor. +    Foi preciso torturar para produzi-la — e Pierre Clastres, num artigo, retomou +    esta ideia, descrevendo os ritos de iniciação dos rapazes índios como sendo +    lições de memória futura, inscrição no corpo e na mente da lei da igualdade.* + +    É desta maneira que Norbert Elias pensa. Pode respeitar os costumes que se +    civilizaram (transparece até mesmo sua simpatia por eles), mas sempre tem em +    mente que o condicionamento foi e é caro. Uma responsabilidade enorme vai +    pesando sobre o homem à medida que ele se civiliza. E isso tanto se entende à +    luz das torturas, físicas ou psíquicas (destas ele fala, em belas páginas, +    sobre a educação das crianças), que Nietzsche havia identificado na origem da +    cultura, quanto à luz do que Freud diz, no fim da vida, sobre a própria +    civilização: quanto mais aumenta, mais cresce a infelicidade. + +    Sabemos que esta equação foi e tem sido bastante contestada — curioso acaso que +    a Introdução de Norbert Elias date do mesmo ano de 1968 que marcou a explosão +    do movimento estudantil e, paralelamente, a publicação do livro de Marcuse, +    Eros e civilização,** que é justamente a primeira grande crítica dirigida à +    ideia de que o custo da Kultur está na infelicidade, no crescente recalcamento +    das pulsões cuja satisfação pode nos fazer felizes. É este um ponto a discutir, +    e sobre o qual duvido que haja resposta convincente, pelo menos por ora. + +    [...] + +    Richard Sennett, em seu O declínio do homem público,*** propõe justamente, ao +    contrário de Elias, entender como distintivo dos últimos duzentos anos um +    “triunfo da intimidade”, uma ênfase cada vez maior na publicação do que outrora +    seria íntimo e recatado. A própria psicanálise representaria, com o papel dado +    à vida sexual no tratamento, um dos exemplos de como apostamos na revelação de +    nossos afetos mais secretos com a esperança de assim encontrarmos uma vida +    melhor, ou uma cura. + +    [...] + +    O que pode também ser discutido, nesta obra de Elias, é a ideia de que existe +    um sentido na história. Com frequência, ele volta à sua ideia reguladora de que +    fenômenos à primeira vista carentes de sentido se examinados a olho nu ou na +    escala do tempo imediato revelam, porém, seu nexo quando postos contra uma +    medida de longo prazo. (Temos, aí, mais uma convergência de Elias com os +    historiadores franceses das mentalidades, adeptos da “longa duração” como a +    medida mais adequada para estudar a história.) Esta medida de longo prazo, ou +    “curva de civilização”, como a chama, adquire especial importância quando passa +    a definir pelo menos os últimos setecentos anos da aventura humana. É verdade +    que Elias não chega a apresentar essa “evolução” como sendo a única possível, +    menos ainda como necessária, para o homem. Mas não é menos verdade que a seu +    ver ela é definitiva, e desde que tomou conta do Ocidente foi assumindo um +    caráter irreversível, a tal ponto (fica pelo menos sugerido) que terminará por +    mundializar-se, alterando também os costumes dos povos que, mais primitivos, +    vivem hoje de um modo que se compara à Europa medieval. + +### Notas + +Do Capítulo I: + +    Oswald Spengler, The Decline of the West (Londres, 1926), p.21: “A todas as +    culturas se abrem possibilidades novas de expressão que surgem, amadurecem, +    decaem, e nunca mais voltam… Essas culturas, essências vitais sublimadas, +    crescem com a mesma soberba falta de propósito das flores do campo. Pertencem, +    como as plantas e os animais, à Natureza viva de Goethe, e não à Natureza morta +    de Newton.”  ### Kultur e Zivilization @@ -2022,6 +2109,46 @@ perturbando seu equilíbrio homeostático.      [...] +    Nos países em fase de industrialização do século XIX, onde foram escritos os +    primeiros grandes trabalhos pioneiros de sociologia, as vozes que expressavam +    as crenças, ideais, esperanças e objetivos a longo prazo das nascentes classes +    industriais ganharam, aos poucos, vantagens sobre as que procuravam preservar a +    ordem social existente no interesse das tradicionais elites de poder dinásticas +    de corte, aristocráticas ou patrícias. Foram as primeiras, em conformidade com +    sua situação de classes emergentes, que alimentaram altas expectativas de um +    futuro melhor. E como seus ideais se concentravam não no presente, mas no +    futuro, sentiram um interesse todo especial pela dinâmica, pelo desenvolvimento +    da sociedade. Juntamente com uma ou outra dessas classes industriais +    emergentes, os sociólogos da época procuraram obter confirmação de que o +    desenvolvimento da humanidade se daria na direção de seus desejos e esperanças. +    Fizeram isso estudando a direção e as forças motivadoras do desenvolvimento +    social até então. É muito difícil, porém, distinguir em retrospecto entre +    doutrinas heterônomas, repletas de ideais de curto prazo condicionados pela +    época em que apareceram, e os modelos conceituais que se revestem de +    importância, independentemente desses ideais, e exclusivamente no que tange a +    fatos verificáveis. + +    Por outro lado, no mesmo século seriam ouvidas vozes que, por uma ou outra +    razão, opunham-se à transformação da sociedade pela via da industrialização, +    cuja fé social era orientada para a conservação da herança existente, e que +    ofereciam — aos que viam no presente um estado de deterioração — o ideal de um +    passado melhor. Representavam elas não só as elites pré-industriais dos Estados +    dinásticos, mas também grupos mais amplos de trabalhadores — acima de tudo os +    que se ocupavam na agricultura e ofícios artesanais, cujo meio de vida +    tradicional estava sendo corroído pelo avanço da industrialização. Eram os +    adversários de todos aqueles que falavam do ponto de vista das crescentes +    classes trabalhadoras industriais e que, de conformidade com a situação +    ascendente dessas classes, buscavam inspiração na crença em um futuro melhor, +    no progresso da humanidade. Desta maneira, no século XIX, o coro de vozes +    dividia-se entre os que exaltavam um passado melhor e os que cantavam um futuro +    mais risonho. Entre os sociólogos cuja imagem de sociedade se orientava para o +    progresso e um futuro melhor eram encontrados, conforme sabemos, porta-vozes +    das duas classes industriais. Incluíam eles homens como Marx e Engels, que se +    identificavam com a classe operária industrial, e também sociólogos burgueses +    como Comte, no início do século XIX, e Hobhouse, no fim. + +    [...] +      O objetivo não é atacar outros ideais em nome dos ideais que temos, mas      procurar compreender melhor a estrutura desses processos em si e emancipar o      arcabouço teórico da pesquisa sociológica da primazia de ideais e doutrinas @@ -2031,4 +2158,242 @@ perturbando seu equilíbrio homeostático.      a investigação do que é a ideias preconcebidas a respeito do que as soluções      devem ser. -A discussão que segue é muito porreta e vale a pena ser lida na íntegra. +A discussão que segue é muito porreta e vale a pena ser lida na íntegra. Em especial: + +    Se o presente estudo tem alguma importância em absoluto, isto resulta de sua +    oposição a esta mistura do que é com o que devia ser, de análise científica com +    ideal. Indica a possibilidade de libertar o estudo da sociedade da servidão a +    ideologias sociais. Isto não quer dizer que um estudo de problemas sociais que +    exclua ideias políticas e filosóficas implique renunciar à possibilidade de +    influenciar o curso dos fatos políticos através dos resultados da pesquisa. O +    que ocorre é o oposto. A utilidade da pesquisa sociológica, como instrumento da +    prática social, só aumenta se o pesquisador não se engana projetando aquilo que +    deseja, aquilo que acredita que deve ser, em sua investigação do que é e foi. + +    [...] + +    Essa cisão nos ideais, essa contradição no ethos no qual são educadas as +    pessoas, encontra expressão em teorias sociológicas. Algumas delas tomam como +    ponto de partida o indivíduo independente, autossuficiente, como a “verdadeira” +    realidade e, por conseguinte, como o objeto autêntico da ciência social; outras +    começam com a totalidade social independente. Algumas tentam harmonizar as duas +    concepções, geralmente sem indicar como é possível reconciliar a ideia de um +    indivíduo inteiramente independente e livre com a de uma “totalidade social” +    igualmente independente e livre, e não raro sem perceber por inteiro a natureza +    do problema. + +### Indivíduo como sujeito aberto + +    No curso deste processo, as estruturas do ser humano individual são mudadas em +    uma dada direção. É isto o que o conceito de “civilização”, no sentido factual +    usado aqui, realmente significa. + +    [...] + +    Na filosofia clássica, essa figura entra em cena como sujeito epistemológico. +    Neste papel, como homo philosophicus, o indivíduo obtém conhecimento do mundo +    “externo” de uma forma inteiramente autônoma. Não precisa aprender, receber +    seus conhecimentos de outros. O fato de que chegou ao mundo como criança, o +    processo inteiro de seu desenvolvimento até a vida adulta e como adulto, são +    ignorados como irrelevantes por essa imagem do homem. No desenvolvimento da +    humanidade, foram precisos milhares de anos para que o homem começasse a +    compreender as relações entre os fenômenos naturais, o curso das estrelas, a +    chuva e o Sol, o trovão e o raio, como manifestações de uma sequência de +    conexões causais cegas, impessoais, inteiramente mecânicas e regulares. Mas a +    “personalidade fechada” do homo philosophicus aparentemente percebe essa cadeia +    causal mecânica e regular, quando adulto, simplesmente abrindo os olhos, sem +    precisar aprender coisa alguma sobre ela com seus semelhantes, e de modo +    inteiramente independente do estágio de conhecimentos alcançado pela sociedade. +    [...] Vimos aqui um exemplo da força com que a incapacidade de conceber +    processos a longo prazo (isto é, mudanças estruturadas nas configurações +    formadas por grande número de seres humanos interdependentes) ou de compreender +    os seres humanos que formam essas configurações, está ligada a um certo tipo de +    imagem do homem e da sua percepção de si mesmo. +    [...] Pessoas para quem parece axiomático que seu próprio ser (ou ego, ou o +    que mais possa ser chamado) existe, por assim dizer, “dentro” delas, isolado de +    todas as demais pessoas e coisas “externas”, têm dificuldade em atribuir +    importância a esses fatos que indicam que os indivíduos, desde o início de sua +    vida, existem em interdependência dos outros. Têm dificuldade em conceber as +    pessoas como relativa, mas não absolutamente, autônomas e interdependentes, +    formando configurações mutáveis entre si. + +    [...] + +    A armadilha conceitual na qual estamos sendo continuamente colhidos por ideias +    estáticas, como “indivíduo” e “sociedade”, só pode ser aberta se, como é feito +    aqui, elas são desenvolvidas ainda mais, em conjunto com estudos empíricos, +    isto de maneira tal que os dois conceitos sejam levados a se referirem a +    processos. Essa tentativa, porém, é inicialmente bloqueada pela extraordinária +    convicção implantada nas sociedades europeias, desde aproximadamente os dias da +    Renascença, pela autopercepção de seres humanos em termos de seu próprio +    isolamento, da completa separação entre seu “interior” e tudo o que é +    “exterior”. + +    [...] + +    Esta autopercepção também se encontra, em forma menos racionalizada, na +    literatura de ficção — como, por exemplo, no lamento de Virginia Woolf sobre a +    incomunicabilidade da experiência como causa da solidão humana. [...] +    Estaremos nós acaso tratando, como tantas vezes parece ser, de uma experiência +    eterna, fundamental, de todos os seres humanos, que não admite qualquer outra +    explicação, ou apenas do tipo de autopercepção que caracteriza um certo estágio +    no desenvolvimento de configurações formadas por pessoas, e das pessoas que as +    formam? + +    [...] + +    Não foram simplesmente as novas descobertas, o aumento cumulativo dos +    conhecimentos sobre os objetos da reflexão humana, que se fizeram necessários +    para tornar possível a transição de uma visão do mundo, de geocêntrica para +    heliocêntrica. O que foi necessário, acima de tudo, foi um aumento na +    capacidade do homem para se distanciar, mentalmente, de si mesmo. Modos +    científicos de pensamento não podem ser desenvolvidos, nem se tornar geralmente +    aceitos, a menos que as pessoas renunciem à sua inclinação primária, +    irrefletida e espontânea a compreender todas as suas experiências em termos de +    seu propósito e significado para si mesmas. O desenvolvimento que levou a um +    conhecimento mais profundo e ao crescente controle da natureza foi, por +    conseguinte, se considerado neste aspecto, também o desenvolvimento no sentido +    de maior autocontrole pelo homem. + +    [...] + +    Não é possível entrar em mais detalhes aqui sobre as ligações entre o +    desenvolvimento do método científico pelo qual se adquire conhecimento de +    objetos, por um lado, e o desenvolvimento de novas atitudes do homem para +    consigo mesmo, novas estruturas de personalidade e, especialmente, mudanças +    rumo a um maior controle das emoções e autodistanciamento, por outro. Talvez +    contribua para a compreensão destes problemas lembrar o egocentrismo +    espontâneo, irrefletido, de pensamento que podemos observar a qualquer momento +    nas crianças de nossa própria sociedade. Um controle mais rigoroso das emoções, +    desenvolvido em sociedade e aprendido pelo indivíduo, e acima de tudo um grau +    mais alto de controle emocional autônomo, foi necessário para que a visão do +    mundo centralizada na Terra e nas pessoas que nela vivem fosse superada por +    outra que, como a visão heliocêntrica, concorda melhor com os fatos +    observáveis, mas que era de início menos gratificante emocionalmente, porquanto +    tirava o homem de sua posição no centro do universo e o colocava em um dos +    muitos planetas que revolvem em torno do centro. A passagem da compreensão da +    natureza legitimada pela fé tradicional para outra, baseada na pesquisa +    científica, e a mudança rumo a maior controle emocional que essa passagem +    acarretou, é um aspecto do processo civilizador, que no estudo que ora +    republico examino a partir de outros aspectos. + +    [...] + +    O desenvolvimento da ideia de que a Terra gira em torno do Sol de uma maneira +    puramente mecânica, de acordo com leis naturais — isto é, de uma maneira que de +    forma alguma é determinada por qualquer finalidade referida à humanidade e, por +    conseguinte, não mais possui qualquer notável importância emocional para o +    homem — pressupunha e exigia ao mesmo tempo um desenvolvimento nos próprios +    seres humanos, no sentido de aumento do controle emocional, maior contenção da +    sensação espontânea de que tudo o que experimentassem, e tudo que lhes dissesse +    respeito, expressava uma intenção, um destino, uma finalidade que se +    relacionava com eles próprios. Agora, na época que chamamos de “moderna”, os +    homens chegaram a um estágio de autodistanciamento que lhes permite conceber os +    processos naturais como uma esfera autônoma que opera sem intenção, finalidade +    ou destino, em uma forma puramente mecânica ou causal, e que tem significação +    ou finalidade para eles apenas se estiverem em condições, através do +    conhecimento objetivo, de controlá-los e, desta maneira, dar-lhes significado e +    finalidade. Mas, nesse estágio, ainda não são capazes de se distanciarem o +    suficiente de si mesmos para tornar seu próprio autodistanciamento, sua própria +    contenção de emoções — em suma, as condições de seu próprio papel como o +    sujeito da compreensão científica da natureza — objeto do conhecimento e da +    indagação científica. + +    [...] + +    Os autocontroles individuais autônomos criados dessa maneira na vida social, +    tais como o “pensamento racional” e a “consciência moral”, nesse momento se +    interpõem mais severamente do que nunca entre os impulsos espontâneos e +    emocionais, por um lado, e os músculos do esqueleto, por outro, impedindo mais +    eficazmente os primeiros de comandar os segundos (isto é, de pô-los em ação) +    sem a permissão desses mecanismos de controle. + +    [...] + +    Todos eles mostram as marcas da transição para um estágio ulterior de +    autoconsciência, no qual o autocontrole embutido das emoções torna-se mais +    forte e maior o distanciamento reflexivo, enquanto a espontaneidade da ação +    afetiva diminui, e no qual as pessoas sentem essas suas peculiaridades mas +    ainda não se distanciam o suficiente delas em pensamento para fazerem de si +    mesmas um objeto de investigação. + +    [...] + +    Chegamos assim um pouco mais perto do centro da estrutura da personalidade +    individual subjacente à experiência de si mesmo do homo clausus. Se +    perguntamos, mais uma vez, o que realmente deu origem a esse conceito de +    indivíduo como encapsulado “dentro” de si mesmo, separado de tudo o que existe +    fora dele, e o que a cápsula e o encapsulado realmente significam em termos +    humanos, podemos ver agora a direção em que deve ser procurada a resposta. O +    controle mais firme, mais geral e uniforme das emoções, característico dessa +    mudança civilizadora, juntamente com o aumento de compulsões internas que, mais +    implacavelmente do que antes, impedem que todos os impulsos espontâneos se +    manifestem direta e motoramente em ação, sem a intervenção de mecanismos de +    controle — são o que é experimentado como a cápsula, a parede invisível que +    separa o “mundo interno” do indivíduo do “mundo externo” ou, em diferentes +    versões, o sujeito de cognição de seu objeto, o “ego” do outro, o “indivíduo” +    da “sociedade”. O que está encapsulado são os impulsos instintivos e +    emocionais, aos quais é negado acesso direto ao aparelho motor. Eles surgem na +    autopercepção como o que é ocultado de todos os demais, e, não raro, como o +    verdadeiro ser, o núcleo da individualidade. A expressão “o homem interior” é +    uma metáfora conveniente, mas que induz em erro. + +### O conceito de configuração + +    A imagem do homem como “personalidade fechada” é substituída aqui pela de +    “personalidade aberta”, que possui um maior ou menor grau (mas nunca absoluto +    ou total) de autonomia face a de outras pessoas e que, na realidade, durante +    toda a vida é fundamentalmente orientada para outras pessoas e dependente +    delas. A rede de interdependências entre os seres humanos é o que os liga. Elas +    formam o nexo do que é aqui chamado configuração, ou seja, uma estrutura de +    pessoas mutuamente orientadas e dependentes. Uma vez que as pessoas são mais ou +    menos dependentes entre si, inicialmente por ação da natureza e mais tarde +    através da aprendizagem social, da educação, socialização e necessidades +    recíprocas socialmente geradas, elas existem, poderíamos nos arriscar a dizer, +    apenas como pluralidades, apenas como configurações. Este o motivo por que, +    conforme afirmado antes, não é particularmente frutífero conceber os homens à +    imagem do homem individual. Muito mais apropriado será conjecturar a imagem de +    numerosas pessoas interdependentes formando configurações (isto é, grupos ou +    sociedades de tipos diferentes) entre si. Vista deste ponto de vista básico, +    desaparece a cisão na visão tradicional do homem. + +### Dança, mu-dança + +    O que temos em mente com o conceito de configuração pode ser convenientemente +    explicado com referência às danças de salão. Elas são na verdade, o exemplo +    mais simples que poderíamos escolher. Pensemos na mazurca, no minueto, na +    polonaise, no tango, ou no rock’n’roll. A imagem de configurações móveis de +    pessoas interdependentes na pista de dança talvez torne mais fácil imaginar +    Estados, cidades, famílias, e também sistemas capitalistas, comunistas e +    feudais como configurações. Usando este conceito, podemos eliminar as +    antíteses, chegando finalmente a valores e ideais diferentes, implicados hoje +    no uso das palavras “indivíduo” e “sociedade”. Certamente podemos falar na +    dança em termos gerais, mas ninguém a imaginará como uma estrutura fora do +    indivíduo ou como uma mera abstração. As mesmas configurações podem certamente +    ser dançadas por diferentes pessoas, mas, sem uma pluralidade de indivíduos +    reciprocamente orientados e dependentes, não há dança. Tal como todas as demais +    configurações sociais, a da dança é relativamente independente dos indivíduos +    específicos que a formam aqui e agora, mas não de indivíduos como tais. Seria +    absurdo dizer que as danças são construções mentais abstraídas de observações +    de indivíduos considerados separadamente. O mesmo se aplica a todas as demais +    configurações. Da mesma maneira que as pequenas configurações da dança mudam — +    tornando-se ora mais lentas, ora mais rápidas — também assim, gradualmente ou +    com maior subitaneidade, acontece com as configurações maiores que chamamos de +    sociedades. O estudo que se segue diz respeito a essas mudanças. + +### Dinâmica criadora de monopólios + +    Desta maneira, o ponto de partida para o estudo do processo de formação do +    Estado é uma configuração constituída de numerosas unidades sociais +    relativamente pequenas, em livre competição umas com as outras. A investigação +    mostra como e por que essa configuração muda. Demonstra simultaneamente que há +    explicações que não revestem o caráter de explicações causais. Isto porque uma +    mudança na configuração é explicada em parte pela dinâmica endógena dela mesma, +    a tendência a formar monopólios que é imanente a uma configuração de unidades +    livremente competitivas entre si. O estudo mostra por conseguinte como no curso +    dos séculos a configuração inicial se transforma em outra, na qual essas +    grandes oportunidades de poder monopolístico são ligadas a uma única posição +    social — a monarquia —, e nenhum ocupante de qualquer outra posição social na +    rede de interdependências pode competir com o monarca. Ao mesmo tempo, indica +    como as estruturas de personalidade dos seres humanos mudam também em conjunto +    com essas mudanças de configuração.  | 
